Dia Internacional para a Eliminação da Discriminação Racial lembra a importância da luta diária contra a discriminação
Em 21 de novembro de 1969, a Organização das Nações Unidas (ONU) instituiu o dia 21 de março como o Dia Internacional para a Eliminação da Discriminação Racial. A data foi escolhida em memória às vítimas do chamado “Massacre de Sharpeville”, ocorrido na província de Gautung, na África do Sul, durante o regime do Apartheid, para que marcasse a importância dessa luta contra a discriminação racial, que, até hoje, se faz presente de forma naturalizada no dia a dia e continua fazendo vítimas ao redor do mundo.
O Apartheid foi uma política de separação das raças que tirou os direitos da população negra, tornando-os dependentes da população branca, na África do Sul, durante a década de 40. O regime contava com a Lei de Passe, que exigia que os negros deveriam portar um documento com o indicativo dos lugares e horários que poderiam circular pela cidade. Caso essa população não apresentasse a autorização de circulação ao ser parada pelas forças policiais, seriam detidos. E foi sob esse cenário político que, em 1960, nacionalistas africanos decidiram organizar uma manifestação.
“O grupo que levou à frente essa ação decidiu que os negros, nas suas respectivas cidades, deveriam entrar nos centros das cidades e ir diretamente para onde estavam as delegacias de polícia para que se mostrassem sem passes. Desse modo, eles seriam presos por violar as leis, mas, como se tratavam de milhares de pessoas com essa desobediência civil, seria impossível para esta minoria branca e suas forças repressivas prenderem todo mundo, toda uma população. Porém, em uma das cidades, Sharpeville, as forças policiais responderam a essa manifestação pacífica abrindo fogo e acabaram matando aproximadamente 70 pessoas e deixando mais de 180 feridos”, explica o professor e historiador Dionisio Baró.
Com esse acontecimento, o mundo inteiro passou a conhecer mais profundamente como funcionava o regime do Apartheid e o que estava acontecendo dentro da África do Sul. Assim a luta contra a segregação racial começou a se espalhar por todos os continentes.
“No mundo ainda falta muito para se fazer. É necessário continuar essa luta porque o racismo é uma ideologia que estabelece a crença na existência biológica de raças, conceito que a Ciência vem, há muitos anos, rejeitando. E, por outra parte, o racismo acredita que essas raças têm determinados comportamentos, formas de atuar e pensar, além de características psicossociais específicas, o que também é falso. Desta forma, o racista determina que o branco tem qualidades e condições positivas - belo, inteligente e trabalhador -, enquanto o negro, indígenas e asiáticos têm características negativas. Essa ideologia, na África do Sul, chegou ao seu máximo, com atitudes absurdas. E hoje, embora o regime do Apartheid já não exista, a ideologia segue viva, infelizmente, e adaptando-se a nova situações no mundo. É um mal que precisa de um grande esforço para ser eliminado”, comenta Dionisio Baró.
As múltiplas faces do racismo - Embora a proibição da discriminação racial esteja presente em todos os principais instrumentos internacionais de direitos humanos e também na legislação brasileira, as atitudes racistas e discriminatórias estão presentes em inúmeros lugares e sob diferentes facetas da sociedade. Acontecem, por exemplo, quando pessoas negras e brancas entregam seus currículos em uma determinada empresa e o Departamento de Recursos Humanos dá prioridade para a contratação da pessoa branca, levando em consideração fatores raciais e não técnicos, ou quando uma instituição, como um todo, espelha as relações sociais racistas que existem na sociedade, dificultando a ascenção profissional de negros.
“As grandes empresas - financeiras, industriais e comerciais - não têm na direção suficiente número de pessoas negras, embora existam pessoas negras bem preparadas técnica e educacionalmente, com condições para dirigir, mas, por causa da cor da pele, são impedidas de avançar. O racismo aparece em toda a parte: na mídia, quando não dão papéis de destaque nas obras dramáticas a atores negros, o que tem começado a mudar no último anos em razão do protesto de movimentos sociais negros; na escola, quando uma criança é ofendida por outras crianças e o professor não faz nada para evitar isso, omissão que afeta a autoestima da criança negra e aumenta, incorretamente, a autoestima da criança branca, que cresce se sentindo superior e com direito de discriminar o negro. Todas essas são diferentes facetas do racismo que devem ser erradicadas”, pontua.
Há também o racismo religioso, quando representantes de uma religião interpretam suas respectivas doutrinas manifestando pontos de vista racistas, repletos de intolerância, que pregam a segregação. “O ser humano é uma mistura indissolúvel de espírito e matéria, então se você atacar algum dos elementos da espiritualidade da pessoa, você está contribuindo para diminuir esta pessoa. Quando você considera que as religiões que chegaram da África são demoníacas, enquanto as que chegaram da Europa são superiores, você está contribuindo para discriminar as pessoas. Neste sentido, ainda se faz necessário ampliar as discussões também no seio da religiosidade”.
De uma forma geral, o historiador aponta que, infelizmente, as manifestações de discriminação racial, de preconceito e de racismo ainda são vistas de forma muito naturalizada na sociedade, o que tem sido recorrente em países que conheceram a escravidão ou a imigração de pessoas de países colonizados. “Aqui, por exemplo, quase todo dia temos notícias de pessoas que foram agredidas por serem negras e estarem em lugares que o racista não considera que é para estarem os negros”, lembra.
Casos como o de João Alberto Silveira Freitas, espancado e morto em uma rede de supermercados ano passado, às vésperas da data em que se comemora o Dia da Consciência Negra no Brasil, demonstram, da pior forma, o quanto as pessoas negras continuam sendo vítimas dessa discriminação racial e da intolerância. Dados oficiais apontam, inclusive, que, a cada 100 homicídios no Brasil, 75 vitimam pessoas negras, o que torna a luta pela eliminação da discriminação racial ainda mais urgente e necessária.
“São muitos os lugares em que se praticam o racismo e a discriminação, então é também dever do Estado fazer todo o possível, por meio de politicas publicas, para modificar essa situação. Devem ser politicas que reparem os danos causados às vitimas do racismo, que valorizem as manifestações culturais e religiosas, políticas que sejam capazes de punir efetivamente os que violam a Constituição e praticam a discriminação racial, e fazer tambem politcas educativas, ou melhor dizendo, reeducativas, que eduquem as pessoas para assumirem relações entre raças de uma maneira positiva e realmente democráticas”.
Momento de reeducar - “Para liquidar o racismo, é necessário identificar e conscientizar todos. Eu considero que uma das principais fontes de racismo é a família, na qual se transmitem os valores racistas dentro de casa, de avô para mãe, de mãe para filho, e isso vai continuando de maneira quase que eterna, se não forem tomadas medidas para cortar esse ciclo vicioso. Ao mesmo tempo, o ambiente escolar também precisa ser modificado. A escola também ensina crianças, desde os primeiros anos, a sentir a discriminaçao com naturalidade. Muitas crianças brancas começam a perceber uma supervalorização de sua identidade, porque seus traços são valorizados esteticamente, enquanto os das crianças negras são desvalorizados, por exemplo, quando cabelos, narizes e cor da pele são vistos como coisas negativas. Isso pode acontecer de maneira direta ou indireta. Direta quando as pessoas são racistas em sua essência, e indireta quando reproduzem, na escola, o descaso com a discriminação que predomina na sociedade como um todo”, aponta Dionisio Baró.
Por esse motivo, segundo o historiador, muitas pessoas negras acabam crescendo com traumas de ofensas que sofreram na primeira infância. Assim, torna-se imprescindível que professores e responsáveis interfiram quando uma criança é ofendida por outra com palavras de cunho racista, para que esta criança não cresça entendendo sua atitude como uma brincadeira normal e reproduza-a diversas vezes. Como , em alguns momentos, pode acontecer de um professor se omitir nessa correção em virtude da falta de um conhecimento mais amplo sobre a temática e da falta de um entendimento que aquela atitude e/ou palavra tem cunho racista. Ações de reeducação para a sociedade como um todo devem se tornar prioridade.
Neste sentido, uma ação importante, tomada nos últimos anos, que já favorece essa mudança de mentalidade e ajuda na reeducação, foi a criação da Lei 10639/03, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e incluiu, no currículo oficial da Rede de Ensino, a obrigatoriedade da presença da temática "História e Cultura Afro-Brasileira e Africana", com o objetivo de trabalhar um conteúdo programático que inclua a luta dos negros, a cultura negra e a formação da sociedade nacional, lembrando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. Conhecer essa parte da cultura e as causas do movimento antirracista no país podem ajudar a modificar a mentalidade e as atitudes de uma sociedade.
Outra instituição importante para a luta antirracista, embora atualmente ainda caminhe lentamente para extinguir essa cultura discriminatória naturalizada, é a mídia, em especial a televisão, que é tida como o veículo de comunicação mais utilizado em todo o mundo. “Quando você não vê a presença da pessoa negra na mídia ocupando um posto de maior valor simbólico, acaba contribuindo para que o cidadão pense que só quem pode ocupar aquele espaço é uma pessoa de pele branca. A mídia é um grande fator de reprodução da discriminaçao racial, embora, nos últimos anos, aqui, no Brasil, algumas empresas de televisão estejam fazendo um esforço para melhorar a presença do negro nesses espaços”.
Por fim, é importante que todos entendam que a luta contra a discriminação racial deve ser um trabalho coletivo, institucional e frequente nas mais diversas esferas da sociedade, pois somente combatendo a ideologia racista é que haverá um mundo mais igualitário. “Para termos uma sociedade realmente livre de preconceito racial, é preciso o esforço de todos, não somente dos negros, que são atingidos diretamente. O racismo transforma a sociedade, como um todo, em uma sociedade injusta. Uma sociedade, para ser verdadeiramente democrática, tem que garantir o avanço, a liberdade e a felicidade de todos os cidadãos. É preciso que todo mundo se envolva na luta contra a discriminação, porque essa discriminação, enganosamente, pode beneficiar determinadas pessoas, porém a sociedade, como um conjunto, se limita. A falta de ascensão da população negra contribui para diminuir o desenvolvimento econômico, o desenvolvimento social e a felicidade coletiva”, finaliza Dionisio Baró.
Texto: Maissa Trajano - Assessoria de Comunicação da UFPA
Arte: Mkt Ascom
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