Para que serve a divulgação científica?
Além de escancarar a centralidade da ciência na vida cotidiana, a pandemia do novo coronavírus tem acentuado o papel de cientistas e instituições de pesquisa que se dedicam à divulgação científica.
Mediados ou não por profissionais de comunicação, fontes acadêmicas (epidemiologistas, historiadores, estatísticos, microbiologistas e sociólogos, por exemplo) têm se mostrado capazes de adaptar a linguagem hermética de suas áreas de especialidade a ponto de torná-las acessíveis e atraentes para audiências mais amplas, leigas, inclusive. Reportagens, lives, animações digitais, entrevistas, infográficos, livros infantis, podcasts e intervenções artísticas parecem poder conviver com os congressos e artigos.
Mas embora não seja uma atividade nova, divulgar ciência para o público em geral segue sendo uma prática acadêmica ignorada, marginalizada até. Professores universitários, por exemplo, colhem pouquíssimo mérito nessas ações quando se submetem a concursos ou editais de progressão na carreira. Registrar seu valor profissional e sua relevância cultural não é somente uma necessidade, portanto, mas uma oportunidade que a vivência da Covid-19 trouxe para a comunidade de divulgadores.
Os significados social, cultural, econômico e epistêmico da divulgação científica merecem desvelo e aprofundamento, claro, mas, um passeio pelo noticiário dos últimos dois meses já poderia ter efeito pedagógico.
Ilustrada pela pandemia, eis para que serve a divulgação científica:
- Para atender a uma demanda reprimida por informação e conhecimento científico, quando um microbiologista é capaz de bater recorde de audiência na tevê aberta.
- Para complementar e incrementar o ensino formal, quando cidadãos escolarizados não dominam conceitos matemáticos necessários para compreender sua realidade.
- Para fundamentar e orientar a tomada de decisão e o exercício pleno da cidadania, quando a informação se torna produto na prateleira da farmácia.
- Para prestar contas à sociedade, reivindicar seu apoio e exigir investimentos, quando, mesmo sob ataque e desprestígio, as universidades públicas protagonizam o combate a pandemia.
- Para denunciar a escassez de investimentos em pesquisa e desenvolvimento, e a emergência de superar uma economia baseada em commodities, quando faltam insumos para a indústria e pesquisa farmacêutica, ou equipamentos para a prática médica.
- Para estimular e fomentar algum controle social da atividade científica, quando a produção acadêmica é açodada, propriedades intelectuais são questionadas ou a ética médica é desafiada.
- Para salientar a importância da pesquisa básica e expor a ciência como parte da cultura (onde há desigualdade e preconceito), quando as expressões “mulher negra” e “sequenciamento de genoma” causam surpresa aparecendo juntas em uma manchete de jornal.
- Para valorizar e legitimar as ciências Humanas e Sociais, seus fenômenos e métodos, quando a desigualdade social põe em xeque os modelos epidemiológicos “tradicionais”.
- Para reivindicar a premência da racionalidade científica, de seus protocolos e práticas, quando uma substância ineficaz segue defendida de forma reiterada, impetuosa e obscura por agentes políticos.
- Para referenciar socialmente a ciência e qualificar o debate público, quando repercutem vozes que minimizam, banalizam e justificam milhares de mortes.
- Para expor o charlatanismo e denunciar crimes, quando falsas curas são vendidas por líderes religiosos e maus profissionais.
- Para combater o negacionismo quando formadores de opinião não tem compromisso com os fatos.
- Para salvar vidas, quando quem poderia fazê-lo é ignorante e incapaz.
A pandemia da Covid-19 é uma aula sobre o potencial da divulgação científica. Transformadora para quem produz e para quem a consome, a atividade serve para reivindicar a ciência como construção central da cultura humana e para que haja alguma possibilidade vida (e morte) autônoma e cidadã para as pessoas.
Somente uma sociedade que se dispõe a partilhar amplamente informações e conhecimentos científicos pode se vislumbrar civilizada, humanista, racional, democrática. Não basta produzir ciência. É preciso que ela se torne um bem público.
Fonte: Observatório da Imprensa
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